Morre João Gilberto aos 88 anos; Relembre o início da carreira do artista com show em Washington transmitido pelo rádio
Acompanhe um momento histórico da música brasileira, em homenagem ao responsável por tornar a Bossa Nova conhecida no mundo todo, João Gilberto.
No áudio, um trecho de apresentação de artistas brasileiros nos Estados Unidos no início dos anos 1960. No estúdio, você ouve o radialista Walter Silva (Picapau), que comandou a transmissão ao vivo. Este material faz parte do acervo Walter Silva e tive acesso a ele quando realizei minha pesquisa sobre o "mais popular 'disc-jóquei' de São Paulo", mantido pela parceira de vida e trabalho do comunicador, Déa Silva.
É creditada ao radialista Walter Silva a introdução
de João Gilberto na era em que os discos substituem a execução ao vivo dos
auditórios. A despeito de se tornar realmente popular, Picapau também alcança
uma audiência extremamente qualificada, como fica claro nesta passagem do livro
Chega de Saudade:
Ouçam este disco, liguem para 36-6331 ou 36-8451, aqui na
Rádio Bandeirantes, e cantem a melodia, a letra ou a divisão, valendo dez LPs!
O disco era Chega de Saudade com João Gilberto, e o
programa era O Pick-up do Picapau,
que outro disc-jockey de São Paulo,
Walter Silva, acabara de estrear nos primeiros dias de dezembro, pela Rádio
Bandeirantes. Dezenas de ouvintes telefonaram aquele dia, tentando repetir o
que tinham escutado, mas, logo às primeiras notas, eram gongados pelo maestro
Erlon Chaves, presente no estúdio. Uns poucos já sabiam a letra de cor e outros
conseguiam solfejar sofrivelmente a melodia, mas todos naufragavam na divisão
de João Gilberto – parecia impossível repeti-la tal qual. Exceto para dois
ouvintes que conseguiram cantá-la à perfeição. O primeiro identificou-se como
Francisco Nepomuceno de Oliveira – na verdade, Chico, vocalista do conjunto
Titulares do Ritmo. O segundo não valia: Agostinho dos Santos. Chega de Saudade tornou-se a abertura do
Pick-up do Picapau nos meses
seguintes – contra a vontade do diretor comercial da estação, Samir Razuk,
segundo Walter Silva. (CASTRO, 1990,
p. 188)
Chega de Saudade!
Essa chamada para que ouvintes
ligassem e tentassem cantar a música “Chega de Saudade” foi feita na
segunda-feira seguinte à apresentação da música em seu programa. Foram convidados
para julgar os participantes o maestro Erlon Chaves, que trabalhava na RGE
(Rádio Gravações Especializadas), em um andar abaixo, o maestro Rubem Perez
Pocho e o Caetano Zama. Após tocar mais uma vez a música, como citado no livro
de Ruy Castro homônimo ao primeiro sucesso de Tom e Vinicius, Chico dos
Titulares do Ritmo e Agostinho dos Santos, dois renomados artistas da época e
ouvintes do programa, foram os únicos contemplados com dez LPs, cada um. Esse
era o prêmio para quem não desafinasse ao interpretar a música.
Tudo havia começado dois dias antes,
quando naquele sábado, destinado tradicionalmente à abertura de espaço para as
gravadoras apresentarem novidades, o representante da Odeon foi ao programa com
o disco 78 rotações que continha “Chega de Saudade”, de Tom Jobim e Vinicius de
Moraes, de um lado e do outro “Bim-bom”, composta pelo próprio João Gilberto.
Quando Adail Lessa levou, naquele
fevereiro de 1959, os discos da EMI e, entre eles, o “Chega de Saudade”, Walter
Silva ouviu e, assim que a música acabou, dirigiu-se ao operador Vicente Lozi e
pediu para que tocasse de novo a música. Ao terminar de ser executada pela
segunda vez, o radialista teria se pronunciado de forma entusiasmada: “Estamos
aqui diante de um fato realmente novo. A melodia é nova, a harmonia é nova, o
ritmo é novo, a interpretação é nova e a letra é nova. Tudo aí é novo. Eu
acredito que esteja nascendo aí uma nova era para a Música Popular Brasileira”.
A melodia era difícil, a letra maior do que as que embalavam os sucessos
populares radiofônicos, a divisão do violão também era inovadora em comparação
aos padrões que se tinha até então.
Eu
nunca tinha ouvido João Gilberto antes. Eu não ouvia a música antes, fosse o
que fosse. O Adail Lessa trouxe o ‘Chega de Saudade’ e eu pus pra tocar. Eu
toquei, levei um susto: ‘tenho certeza que estou diante de algo novo, algo
bonito’. Pedi para tocar de novo. Na segunda, que também era dia de novidade,
Adail Lessa voltou. Eu perguntei se ele havia trazido novamente o João Gilberto
e fiz uma promoção para ver quem conseguia cantar ao vivo, pelo telefone da
Rádio Bandeirantes. (SILVA, 1983)
A ideia do concurso havia surgido
quando, ao descer as escadas, no 2º andar (onde ficava a RGE), encontrou o
contrabaixista Sabá[1] e os
integrantes do conjunto Os Modernistas ouvindo João Gilberto. Eles estavam
estudando a melodia, o andamento e a letra de “Chega de saudade”, com
dificuldade. Foi a partir dessa dificuldade que Os Modernistas tiveram para
entender aquela música que Walter criou o desafio no programa de segunda, que
também era destinado a novos artistas. No dia seguinte, em São Paulo, muitas
pessoas estavam com a música introjetada e procuravam por “Chega de Saudade”
nas lojas, que ficou entre os dez discos mais vendidos por cerca de um ano.
Dias após a morte do radialista, o
jornalista Luiz Fernando Vianna, no artigo “Walter Silva popularizou a Bossa
Nova”, de 02 de março de 2009, relativiza mas confirma o papel fundamental do
Picapau na difusão da Bossa Nova.
Walter
Silva dizia, com extremo orgulho, ter lançado ‘Chega de Saudade’. Não foi o
único disc-jóquei a fazê-lo, pois Hélio de Alencar também teve um papel nessa
história, mas não há dúvida de que a transformação da gravação de João Gilberto
em abertura de "O Pick-up do Pica-Pau" foi fundamental para a difusão
da bossa nova. (FOLHA DE SÃO PAULO, 02.mar.2009)
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João Gilberto em apresentação nos Estados Unidos (Acervo Walter Silva) |
[1] Sabá atuou com grupos vocais como Os
Modernistas. Fez parte também do Jongo Trio e do Som Três. (ALBIN, 1995)
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