80 anos de Chico Buarque e uma de suas mais incríveis criações: Julinho de Adelaide

 


Em setembro de 1974, o jornal Última Hora de Samuel Wainer apresentou uma entrevista exclusiva com Julinho da Adelaide. Conduzida por Mário Prata e Melchiades Cunha Jr., a conversa foi gravada e hoje é um dos mais interessantes registros daqueles anos de chumbo. Neste episódio de número 300 desta temporada do podcast Peças Raras, ouça trechos dessa entrevista. 


Para você entender um pouco melhor do que estamos falando, acompanhe o depoimento do jornalista e escritor Mário Prata publicado em 1998 no site

oficial de Chico Buarque:  

“Eu me lembro até da cara do Samuel Wainer

quando eu disse que estava pensando em entrevistar o Julinho da Adelaide para o jornal dele. Ia ser um furo. Julinho da Adelaide, até então, não havia dado

nenhuma entrevista. Poucas pessoas tinham acesso a ele. Nenhuma foto. Pouco se sabia de Adelaide. Setembro de 74.

 

- Ele topa?


- Quem, o Julinho?


- Não, o Chico.


O Chico já havia topado e marcado para aquela noite na casa dos pais dele, na rua Buri. Demorou muitos uísques e alguns tapas para começar. Quando eu achava

que estava tudo pronto o Chico disse que ia dar uma deitadinha. Subiu. Voltou uma hora depois.


Lá em cima, na cama de solteiro que tinha sido dele, criou o que restava do personagem.


Quando desceu, não era mais o Chico. Era o Julinho. A mãe dele não era mais a dona Maria Amélia que balançava o gelo no copo de uísque. Adelaide era mais de

balançar os quadris.



Julinho, ao contrário do Chico, não era tímido. Mas, como o criador, a criatura também bebia e fumava. Falava pelos cotovelos. Era metido a entender de tudo.

Falou até de meningite nessa sua única entrevista a um jornalista brasileiro.

Sim, diz a lenda que Julinho, depois, já no ostracismo, teria dado um depoimento ao brasilianista de Berkely, Matthew Shirts. Mas nunca ninguém teve

acesso a esse material. Há também boatos que a Rádio Club de Uchôa, interior de São Paulo, teria uma gravação inédita. Adelaide, pouco antes de morrer, ainda

criando palavras cruzadas para o Jornal do Brasil, afirmava que o único depoimento gravado do filho havia sido este, em setembro de 1974, na rua Buri,

para o jornal Última Hora.


Como sempre, a casa estava cheia. De livros, de idéias, de amigos. Além do professor Sérgio Buarque de Hollanda e dona Maria Amélia, me lembro da Cristina

(irmã do Julinho, digo, Chico) e do Homerinho, da Miucha e do capitão Melchiades, então no Jornal da Tarde. Tinha mais irmãos (do Chico).

Tenho quase certeza que o Álvaro e o Sergito (meu companheiro de faculdade de Economia) também estavam.


Quem já ouviu a fita percebeu que o nível etílico foi subindo pergunta a resposta. O pai Sérgio, compenetrado e cordial, andava em volta da mesa folheando uma enorme enciclopédia. De repente, ele a coloca na minha frente, aberta. Era em alemão e tinha a foto de uma negra. Para não interromper a gravação, foi lacônico, apontando com o dedo:


- Adelaide.


Essa foto, de uma desconhecida africana, depois de alguns dias, estaria estampada na Última Hora com a legenda: arquivo SBH. Julinho não se deixaria fotografar. Tinha uma enorme e deselegante cicatriz muito mal

explicada no rosto.


Naquelas duas horas e pouco que durou a entrevista e o porre, Chico inventava, a cada pergunta, na hora, facetas, passado e presente do Julinho. As informações jorravam. Foi ali que surgiu o irmão dele, o Leonel (nome do meu

irmão), foi ali que descobrimos que a Adelaide tinha dado até para o Niemeyer, foi ali que descobrimos que o Julinho estava puto com o Chico:


- O Chico Buarque quer aparecer às minhas custas.


Para mim, o que ficou, depois de quase 25 anos, foi o privilégio de ver o Chico em um total e super empolgado momento de criação. Até então, o Julinho era apenas um pseudônimo pra driblar a censura. Ali, naquela sala, criou vida.

Baixou o santo mesmo. Não tínhamos nem trinta anos, a idade confessa, na época, do Julinho.

Hoje, se vivo fosse, Julinho teria 80 anos. Infelizmente morreu. Vítima da ditadura que o criou.

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