Transcrição: Cristino Wapichana e a importância das histórias para povos indígenas (Pois é, Poesia)


Depois de Pedro Bandeira, de Tino Freitas e da dica de leitura de Nat Grego, a 5ª transmissão ao vivo do podcast Pois É, Poesia: Arte no Plural conta com a participação de Cristino Wapichana. Acompanhe a entrevista e a transcrição a seguir:

 

Reynaldo Bessa:

Você conhece o povo Wapichana? Bom, se não, vai saber e se já sabe, vai aprofundar este conhecimento. Quem vai falar um pouco sobre essa etnia é Cristino Wapchiana. Cristino Wapichana é escritor, músico, compositor, cineasta e contador de histórias. Patrono da cadeira 146 da Academia de Letras dos Professores (APL) da cidade de São Paulo. É autor do livro A Boca da Noite, traduzido para o dinamarquês e sueco, esse vencedor da Estrela de prata do prêmio Peter Pan 2018, do do International Board on Books for Young People (IBBY). Escritor brasileiro escolhido pela seção IBBY Brasil para figurar a lista de honra do IBBY 2018. Prêmio FNLIJ 2017 nas categorias Criança e Melhor Ilustração; Prêmio Jabuti 2017; finalista do Prêmio Jabuti 2019.

Cristino, seja muito bem-vindo ao Pois É, Poesia. Como está, tudo bem?

 

Cristino Wapichana:

Tudo bem, Reynaldo? Boa noite, boa noite para todos que estão nos ouvindo, Marcelo. É uma alegria poder participar com vocês aqui e ouvir Pedro Bandeira que em 2017, recebi o Prêmio Jabuti das mãos dele e foi uma noite muito especial, porque dois indígenas estavam recebendo esse prêmio: Daniel Munduruku na categoria... não lembro a categoria dele... acho que Juvenil e eu, na Infantil. Então, para o país foi um momento histórico, para os povos indígenas também.

 

Reynaldo Bessa:

Maravilha. Cristino, eu gostaria que você falasse um pouco sobre a origem da expressão wapichana, a palavra Wapichana na língua Aruak, né, traduzido para o português significa homens gatos, certo? É isso mesmo e por quê?

Cristino Wapichana:

É, provavelmente foi dado por algum outro povo, pela forma de pintura ou movimento, enquanto se faziam guerras, alguma característica ligada a esse bicho. Então o povo Wapichana, eu penso que recebeu esse nome, não foi um escolhido pelo povo, mas um outro, normalmente é um outro povo que dá o nome para outro povo.

Reynaldo Bessa:

Certo. É, o Modernismo brasileiro incluiu o folclore como uma das suas fontes inspiradoras, como Macunaíma, o Martim-Cererê, O saci, o curupira, enfim, a lenda é uma das ramificações do folclore brasileiro, assim como o mito, a crença, a dança, entre outros. Na cultura Wapichana há o conceito de lenda ou apenas o de história? Pode falar um pouco sobre isso?

Cristino Wapichana:

Apenas histórias, porque aquilo que o Pedro Bandeira estava falando sobre essa primeira infância. Para nós, é o primeiro tempo, é o tempo da magia em que tudo está se formando e esse tempo de tantas mudanças da criança até adolescência, é o momento que ele está sendo... preenchendo de tudo, de todas as informações. Então, o máximo de histórias que ele ouvir, o máximo de coisas, de experiência que tem, é o que vai ficar pra vida adulta. Bartolomeu Campos de Queirós falou uma vez que - numa conversa com ele – falou ‘eu escrevo aquilo que é da minha infância’. E normalmente o que a gente escreve tem muito a ver com esse universo que nós vivemos, as experiências que tivemos. Então é nesse primeiro tempo, as crianças elas ouvem, acreditam mesmo. Então, quando o avô, especialmente a avó conta, tem um valor maior que os próprios pais quando contam. É quando coloca no colo e conta a história. Põe numa... acolhe todos e conta uma história. Nossa história, por exemplo, de criação, é que nós nascemos do Sol e da Lua, então moravam aqui, tiveram os Wapichana e, claro, como todo casal, briga, brigaram e foram embora. Quando eles contam da nossa infância, isso fica. Então nós somos filhos do Sol e da Lua. Não importa se eu vou entender de física depois, saber que o Sol é 1 milhão e 300 mil vezes maior que que a Terra. Isso é irrelevante. O que é relevante é que, nesse momento, nos trouxe essa noção, esse orgulho de ser filho desses dois astros. Então, a história em si, ela não tem a função, no meu ponto de vista, de falar a verdade ou contar mentiras. Ela está aí para explicar as coisas, para trazer magia, orgulho, trazer os heróis, os deuses, trazer tudo. Então, ela não tem esse compromisso ‘Ah, que isso é verdadeiro’; ‘Isso é falso’, não. Vai ter um compromisso de trazer informações, aquilo que nos orgulha, aquilo que faz com que a gente aprenda a conviver uns com os outros, com as coisas do mundo. Então ela vem para explicar e nos acolher para essa harmonia que vai ser fundamental para a nossa existência.

Reynaldo Bessa:

Maravilha. Vamos falar um pouquinho agora sobre o Boca da Noite, né? Há um trecho, né, em um dos versos lá que é assim: “o jantar era o reencontro da família após as atividades do dia”, quer dizer, as refeições tradicionalmente não são apenas uma parada para alimentar-se, né, mas sim para fortalecer vínculos, para saber como todos estão após o fim do dia, da colheita, enfim, saber se todos estão bem. Um tipo de revista, né? No Brasil, isso era muito forte. Filhos almoçando com pais, netos com avós, enfim, entre vocês, o povo Wapichana, vocês ainda mantêm essa continuidade, essa regularidade com relação às refeições, não só como uma forma de comer, mas sim como saber como o outro está?

Cristino Wapichana:

Mantém sim, se mantém. Isso é muito bonito. Isso é o que fortalece uma família. Quando utilizam a frase ‘Ah, os indígenas são preguiçosos e tal, e tal e tal’ nós não vivemos no sentido de servir o outro, trabalhar para o outro, ser dominado pelo outro. Nós crescemos numa independência, conhecendo tudo o nosso território, conhecendo tudo quanto é coisa venenosa, os tipos de árvores, tipo de alimento, de medicina, de tudo. A gente aprende para viver de uma forma independente, mas sempre ligado nessa harmonia de servir uns aos outros, de saber como o outro está, isso é fundamental para a existência de uma família. A roça que nós plantamos, ela é pro tamanho da nossa família, um pouco maior, que é pra quando as pessoas vierem, estiverem com a gente, as visitas chegarem tem alimento pra elas. Então nós vamos de manhã cedo, quando o sol está perto de nascer, que é o momento que alguns bichos gostam de sair para comer, vão comer o que foi plantado. Então a gente vai lá, cuida da roça, limpa, molha e quando for umas 9, 10 horas, está de volta, porque o sol aquece. E esse momento, quando volta para casa, vai ter uma outra harmonia com os filhos. É o momento que ensina. As mulheres a aprender as coisas de menina, vão ensinando para elas a coisa da vida adolescente, adulta. Os meninos também vão aprender a fazer arco e flecha, aprender outras, quando for lá pelas 3 e meia, 4 horas que o Sol começa a esfriar, vai se fazer uma visita na roça novamente. Então, não há necessidade da gente trabalhar para vender para o outro. Esse momento que ficamos com a família, isso causa que não há - dificilmente acontece - uma separação, quando se tem essa harmonia, esse vínculo familiar.

Reynaldo Bessa:

O sol, ele é muito presente nas suas narrativas, né? O Boca da Noite até tem ali o início do livro, tem essa relação com o Sol, enfim, essa curiosidade dos dois personagens, né? Enfim, é muito interessante. Meu amigo Cristino, querido, eu agradeço aqui a tua participação. O nosso tempo é infelizmente muito pequeno, mas se você quiser ler alguma coisa, algum trecho de um livro seu, por favor, fique à vontade, está bom?

Cristino Wapichana:

Eu queria ler, mas antes eu queria falar uma coisa. Nós falamos muito de leitura de livros, mas há muitas leituras talvez mais importantes do que o livro, que é você ler o seu lugar. Você ler as árvores, você ler as plantas medicinais ou você ler o rio, aprender a respeitar ele para uma boa harmonia. Então a sociedade da cidade está muito distante da terra. Por isso que esse caos todo está acontecendo e as pessoas só reclamam, mas não plantam nada em casa, nem uma erva, não plantam nada. Os filhos não sabem nada sobre nada. Como o alimento chega, porque já pega no mercado. E a gente precisa voltar um pouco mais para a terra para poder conhecer essa terra, para poder ajudar essa terra, para nos proteger. Eu escrevi, estou escrevendo para os 4 elementos, esse é o Chuva, a gente também tem o fogo. E eu queria só ler um trechinho aqui desse livro, ilustrado pela Graça Lima, que também é uma obra de arte. A Graça Lima que fez, ilustrou o livro Boca da Noite também. E diz o seguinte: ‘3 dias depois daquele temporal, a vegetação estava mais verde. Fomos cedo tomar banho no Igarapé, que tinha uma água que morre cristalina como cor de chuva. (Aqui é uma menina de 10 anos e uma avó) Assim que chegamos, uma chuva fina veio nos visitar. Olhe para água, minha neta. Veja como os pingos de chuva são acolhidos pelas águas mais velhas do Igarapé. Os pingos nunca são iguais, mas todos têm a mesma função de renovar as forças do Igarapé e uma única água. A água da chuva se une de tal forma com as águas dos rios e oceanos que fica impossível separá-las. E ela continuou... Ouça como os pingos de chuva se chocam com as folhas das árvores, é possível sentir e ouvir a chuva cantar. Antes mesmo dela chegar, o vento anuncia sua aproximação. Cada chuva canta sua própria canção. Quando os pingos tocam as coisas, os sonhos são incontáveis, como os passarinhos cantando, muitos passarinhos cantando juntos. Você consegue ouvir, vó, o que a chuva canta? Sim, minha neta, respondeu. E o que ela canta? A música da vida, minha neta. Quando chove, o mundo também se encanta e se revigora. E nós nos alegramos como os sapos coaxando no início da noite. Naqueles dias, aprendi sobre os muitos jeitos de chover. Há chuvas que nos obrigam a buscar abrigo por serem poderosas, outras que não deixam as estrelas aparecerem. Algumas que escondem o Sol como se quisesse o seu calor só para elas. Aquelas que chegam de surpresa para nos molhar de propósito. E aquelas que cantam com a brisa noturna até que os nossos olhos adormeçam e a gente sonhe em ser chuva. Também existe chuva sob forma de meninas e meninos que brincam de molhar os passarinhos. E tem chuva que nem chega a molhar o chão, mas que criam os raros arco-íris que foram o Sol para nos dizer simplesmente que as águas irão demorar dias para chegar por ali, pois estarão ocupados em irrigar a outros lugares. Agora sei que minha avó também é chuva. Eu sou chuva. Todos nós somos chuvas que se renovam entre a terra e o céu. Chuvas que banham com igualdade aldeias, cidades, ruas, calçadas, floresta, terra, gente. Águas dos rios, bares e oceanos e que também não esquecem dos pequenos igarapés, lagos e todos os seres que têm dentro de si uma Poção da sagrada água.

Reynaldo Bessa:

Muito bom, muito bom, obrigado, querido, viu? Sucesso aí nos seus livros, na tua saga, na tua luta boa pelos teus objetivos, OK?

Cristino Wapichana:

Obrigado, Reynaldo, e um abraço para todos, até mais.

Reynaldo Bessa

Um abraço.

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