Transcrição: Jr. Bellé e o retorno ao ventre, após a morte da mãe



Neste episódio, extraído da transmissão que foi ao ar no último Dia da PoesiaJr. Bellé conversa com Reynaldo Bessa sobre a história real que está por trás do livro Retorno ao Ventre. Escrito em português e traduzido integralmente ao idioma kaingang, a obra traz um longo poema que traduz uma epopeia coletiva. 

Na conversa, além de ler o trecho "O Destino do Dia", Bellé fala sobre o apagamento do território e da cultura indígena que se dá de forma violenta no sudoeste do Paraná. O poeta conta como a morte da mãe revela a necessidade do retorno dele ao ventre e como isso o faz entender um dos mais violentos processos de colonização interna do país. 

Como está na apresentação de Retorno ao Ventre, "aos povos indígenas do Sul é imposta toda sorte de invisibilidade. Este livro de poesia investiga uma memória familiar que se confunde com a própria história invisibilizada do Paraná".

Assista à participação de Jr. Bellé e, abaixo, acompanhe a transcrição da conversa. 


(Vinheta cantada) Pois É, Poesia

Pois É, Pois É, Pois É, Poesia.

Poesia há. Ou não.

 

Reynaldo Bessa:

Agora é a hora e a vez de Jr. Bellé.

Jr. Bellé é filho da Dona Bete e do Seu Valcir, nascido em Francisco Beltrão, sudoeste do Paraná, terra indígena ancestral.

É mestre em estudos culturais na USP e doutorando em estudos literários na UFPR.

Foi escritor residente da Yaddo, em Saratoga Springs, Nova Iorque, contemplado com a bolsa Abigail Angell Canfield and Cass Canfield Jr. Residency for Writers; e do Art Farm, em Marquette, Nebraska, onde escreveu seu primeiro livro, Trato de Levante (Patuá).

A obra teve seus direitos vendidos para o cinema e foi exibida em festivais de poesia e cinema, como Queensland Poetry Festival, na Austrália, e Mammoth Lakes Film Festival, nos Estados Unidos. Publicou ainda a coleção de poemas amorte chama semhora (Patuá) e venceu o Prêmio Flipoços de poesia.

Com seu primeiro romance, Mesmo sem saber pra onde (Folheando, a editora, né?), venceu o Prêmio Variações de Literatura e recebeu menção honrosa no Prêmio Casa de las Américas, em Havana, Cuba.

Com seu mais recente livro, Retorno ao ventre, venceu o Prêmio Cidade de Belo Horizonte, em 2023, na categoria Poesia.

Jr. Bellé, querido, seja muito bem-vindo. Nós ganhamos um pouco mais de tempo aí para conversar. Infelizmente, perdemos aí um... Caiu, digamos, a Vera Eunice. Mas estamos aqui com um tempinho mais para a gente conversar. Eu tenho umas perguntas bem interessantes, até pela sua história, pela sua atuação. Enfim, li o seu livro, conversei com Ademir Assunção, ... Tudo certo?

 

Jr. Bellé

Tudo certo. Prazer, Bessa, prazer estar aqui no Pois É, é boa noite aí para todas as pessoas, para todos, todas e todes que estão aí ouvindo a gente. Como vocês podem ver, eu estou aí, eu sou um proletário, então eu estou no meio do trabalho, ainda são 9h24 da noite, eu ainda estou aqui trabalhando, mas parei um pouquinho para falar com vocês e para ouvir os colegas também, né? Foi um prazer ouvir o Marcelo Montenegro, Marcelo Ariel, te ouvir, ouvir o Chacal, então estamos aí, vamos, vamos conversar sobre poesia.

 

Reynaldo Bessa:

Eu estava me perguntando se você ia usar esse mesmo cenário. Será que é real mesmo? Eu tinha visto você numa outra entrevista. Você está trabalhando, é o poeta proletário, enfim, é o...

 

Jr. Bellé

Muito. É o último... Eu fiz um podcast no “Pod Ler e Escrever”, que também foi do meio do trabalho, exatamente aqui onde eu estava nesse momento.

 

Reynaldo Bessa:

Exato. Bellé, o seguinte, cara, o teu nome, Bellé, tem quais origens? As origens? Vou começar por aí. Fiquei curioso. É, tem a ver com apelido de criança, adolescência?

 

Jr. Bellé:

É sobrenome mesmo, sobrenome paterno. Italiano.

 

Reynaldo Bessa:

Italiano, Bellé.

 

Jr. Bellé:

Dizem que ali do sul da Itália, mas eu não faço a menor ideia.

 

Reynaldo Bessa:

Pô, cara, você descendente de italiano, mas tem um pé ali na ancestralidade indígena, tem um universo bem, bem rico, não é? Bom, no primeiro verso de um de seus poemas, o eu lírico diz, “há coisas que só devem ser ditas na língua materna”. Que coisas são essas, Bellé?

 

Jr. Bellé:

Bom, por exemplo, essa história, né, contada pelo “No Retorno ao Ventre”, né? A língua materna, no caso, seria os idiomas indígenas, os idiomas originários. São nossas línguas maternas, né, o português, o espanhol, o inglês são nossas línguas madrastas, né? Então, elas vieram com o colonizador e aqui estamos hoje falando português, inclusive, mas as línguas originárias, as línguas maternas mesmo são as línguas da terra, são as línguas nascidas aqui ou das raízes do Brasil. E no meu caso, tenho duas. Dentro do tronco materno, tenho duas origens indígenas, né? Kaingang e Guarani. Então essas são as línguas. Eu acho que essas histórias que descendem desse lugar, elas precisam ser faladas nessas línguas, nesses idiomas.

 

Reynaldo Bessa:

Você também não chama, não considera essas histórias lenda, considera histórias? A gente trouxe um convidado no Pois É e ele disse, “não, não no universo indígena não existem lendas, né, existem histórias que são contadas pelos nossos, enfim, patriarcas e matriarcas”. É isso também. Você não considera como lenda ou seria mesmo histórias? Como é que é isso?

 

Jr. Bellé:

Cara, eu não considero como lendas, porque essas histórias fazem parte da cosmologia de um povo e a cosmologia de um povo ela conta muito mais do que uma lenda conta, ela vai te falar sobre os valores morais, ela vai te contar sobre os seus ancestrais, ela vai te contar a história do mundo. Como o mundo surgiu, como o mundo se desenvolveu, como aquela paisagem geográfica que você está vivendo, aquele morro, aquele rio surgiu.

Então, essas histórias, elas vão, elas são como se fosse o Atlas da história do mundo para esses povos, então através dessas histórias que vão se contando, que vão sendo organizadas e vão se refazendo. Porque, como a maioria desses povos não tinha escrita, todas essas histórias são oralizadas e são passadas de pai para filho, de avô pra neto. Então, elas também vão se reinventando, vão sendo recontadas, vão sendo reestruturadas à medida que o tempo passa. E isso também conta essa mudança, essa transformação nessa história também conta muito sobre o povo e, também, conta muito sobre o mundo em que ela está inserida.

 

Reynaldo Bessa:

Certo. É muito interessante essa coisa da história. Estava lendo um livro sobre os índios, né? Muito antes, mais de 2000 línguas, enfim, nós temos algumas... essas línguas que você fala, né?

Bom, você tem os pés fincados na ancestralidade indígena, como eu falava, não é isso? E sua poesia traz essa força ancestral muito bem delineada. No entanto, você é um homem branco, né, de cabelos claros, como você mesmo disse numa entrevista, não são palavras minhas, são suas palavras.

Como é que é isso? Viver... estar, digamos, não de lados, mas estar nesses dois universos ao mesmo tempo. Responder por uma ancestralidade, uma história, uma bagagem, ao mesmo tempo ser esse ser contemporâneo, com essas demandas e velocidades da cidade grande. Enfim, como é que é isso? É confuso?

 

Jr. Bellé:

Cara, pra mim não é tão confuso, mas assim tem muita, tem muita gente que está fazendo essa retomada, a retomada, essa palavra retomada ela é muito usada para retomada de territórios nas retomadas indígenas. As grandes retomadas indígenas são essas lutas por território. Mas você pode usar essa palavra também para uma retomada da sua história, do seu território ancestral de vida e de, enfim, dos seus ancestrais, né, do seu avô, do seu bisavô, do seu tataravô. E essa visão fenotípica ela não funciona muito bem para os povos indígenas, porque é uma, é uma variedade étnica muito grande. Então existem indígenas, por exemplo, no sul mesmo, muito comum, você vê indígenas brancos, porque já são mestiçados com alemães, com italianos, enfim, até japoneses. Enfim, você tem uma mestiçagem muito grande. Então, esse valor fenotípico é muito ruim para delimitar os povos indígenas.

Porém, no meu caso, não é nem isso. Eu descobri essa origem indígena quando eu já estava muito mais velho. Então foi uma... foi realmente um mergulho numa história familiar e, também, na história do lugar onde eu nasci, porque ao contar esse livro e ao conversar com os meus familiares etc., e buscar, cavar essa história, eu fui cavando também um pouco sobre a história do lugar que eu nasci e a história do lugar que eu nasci é uma história indígena. Que pouca gente sabe que é uma história indígena, porque vem do Paraná, né? O Paraná é esse lugar sem muita identidade definida. Aliás, sem nenhuma identidade definida, né? O Leminski, inclusive, que você citou aqui, falava muito sobre isso, né? Sobre essa pouca parca identidade. E é...

 

Reynaldo Bessa:

Cara, e essa história do Fandango e tal. Como é que é isso? Isso não se sobressai no Paraná e tal?

 

Jr. Bellé:

Sim. Assim, óbvio, no leste do Paraná, o fandango é fortíssimo e talvez seja o resquício cultural mais original que existe, né? Com as rabecas e é um som maravilhoso. Eu costumo dizer... e o sudoeste não. O sudoeste é outra coisa. A terra onde eu nasci, que é Francisco Beltrão, que é o sudoeste do Paraná, ali perto de Foz, Cascavel, esse espaço era Paraguai até a guerra do Paraguai, né? Foi um espólio de guerra isso aí. Essa terra era paraguaia, então, assim, boa parte do Paraná, depois foi um estado chamado Iguaçu durante um tempo, depois virou para o Paraná de novo. O norte do Paraná já foi São Paulo, então é um estado bastante sem identidade. E eu acho que só vai adquirir essa identidade, só vai conhecer e encontrar esse lugar... esse lugar cultural, quando começar a olhar para as suas raízes. E as raízes do Paraná são raízes, obviamente, que passam pelos migrantes, obviamente, claro, mas passam muito mais pelos povos indígenas, povo Kaingang, o povo Xokleng, os povos Guaranis, Mbya, Kaiowa e também com, obviamente, com os povos pretos que ali estavam e ali estão ainda, né? E se não tiver essa retomada desse lugar, o Paraná vai continuar sendo absolutamente desprezível culturalmente, como é há muito tempo.

 

Reynaldo Bessa:

Cara, o Câmara Cascudo, que é meu conterrâneo - ele é de Natal, eu sou de Mossoró, Rio Grande do Norte, né? Sou potiguar, “comedores de camarão” ali das margens do Rio, enfim, Rio Grande do norte - ele diz o seguinte, que o Rio Grande do Norte também tem essa coisa, né? de... Ele fala o seguinte, Rio Grande do Norte não consagra ninguém, mas não desconsagra ninguém. Câmara Cascudo conseguiu...

 

Jr. Bellé:

Câmara Cascudo é maravilhoso.

 

Reynaldo Bessa:

É maravilhoso! A gente convive com isso aí, eu entendo muito bem.

Cara, como que se deu essa viagem poética em sentido que, na minha concepção anti-horário, quer dizer, como foi a construção, a desconstrução, podemos dizer, desse seu retorno ao ventre. Fala um pouco, por favor, sobre essa obra incrível, cara, incrível. Você fez uma obra incrível. Esse seu livro.

 

Jr. Bellé:

Obrigado! Cara, o livro, assim, a ideia do livro partiu de uma conversa que eu tive com a minha tia, uma tia minha que a tia Pedrolina, que virou uma personagem do livro, obviamente que ela foi ficcionalizada, mas ela é uma personagem do livro.

E aí a gente estava... Eu trabalhei no Sesc. Esse aqui é o escritório do Sesc da Avenida Paulista. E eu trabalho fazendo programação de literatura. E na época eu estava pesquisando temas para fazer uma programação de literatura indígena. E minha tia me ligou, a gente tem uma relação muito boa, meio materna mesmo assim, desde que a minha mãe faleceu, ela um pouco assumiu esse lugar. E a gente começou a conversar... eu tava contando para ela sobre essa programação e ela soltou essa informação assim, “Ah, a gente tem... a nossa família tem uma origem indígena”. E eu falei, “Ah, já sei”, a gente tem... a gente tinha um bisavô Guarani. E ela, “não, não, a gente tem uma outra origem indígena, que é a bisavó, que foi pega no mato”. E eu... eu nunca... não sabia dessa história. Eu fiquei um pouco assustado, né? E comecei a questionar.

 

Reynaldo Bessa:

Você quer dizer, no caso, houve um estupro, não é isso?

 

Jr. Bellé:

Isso exatamente. Assim, a mestiçagem do Brasil até ontem era basicamente feita de estupros, né? Então assim, ela...

 

Reynaldo Bessa:

E é bom que isso seja dito, entendeu?

 

Jr. Bellé:

Exatamente, ela foi cassada no mato, ela foi sequestrada e ela foi estuprada. E ela era uma criança, muito provavelmente uma criança nos 14 anos. E eu não sabia dessa origem. Então eu comecei a pesquisar, fui conversar com os mais velhos da família, depois fui pesquisar os dados meio etnográficos, saber onde meus bisavós nasceram para poder entender. E assim eu não consigo descobrir exatamente qual era a origem dessa criança, dessa pessoa, mas, de acordo com o mapeamento geográfico que eu fiz, mais ou menos, eu entendi que ela muito provavelmente era Kaingang. Ela pode muito bem ser uma criança Guarani, mas pelo mapeamento que eu fiz, eu imaginei que fosse uma criança Kaingang. E de alguma forma a cultura Kaingang foi meio que aparecendo na minha pesquisa.

De repente apareceu um livro que era inteiro sobre a cultura Kaingang do sudoeste do Paraná. Na minha pesquisa, comecei a ler, daí eu conheci uma pessoa que era Kaingang e a gente começou a conversar. E nisso eu fui mergulhando na cultura Kaingang, mas essa é uma porção, né? A outra porção é como você constrói quando você conta essa história, como você ficcionaliza e traz dados históricos e documentos históricos, como está no livro através da poesia, não é isso? É um, também, um trabalho de linguagem assim, desesperador, maravilhoso e desesperador ao mesmo tempo assim.

 

Reynaldo Bessa:

É, existe uma palavra? Curiosidade só, não é uma pergunta. Uma palavra em Kaingang que substitui poesia ou não? Não tinha uma.

 

Jr. Bellé:

Não, não tinha, cara, não tinha, a gente buscou bastante.

A gente não encontrou. O André Caetano, que fez a tradução do livro, é uma liderança indígena terra indígena Serrinha, no Rio Grande do sul, professor de kaingang, um amigo também meu, professor de kaingang também, a gente buscou muito durante a edição do livro, a palavra poesia, e a gente teve que dar umas voltas ali assim.

 

Reynaldo Bessa:

Tá certo? É, cara, nós vivemos tempos de embates, embates acirrados, né? Então, um teórico disse uma vez, disse uma vez é, o poeta pode ter ideologia, mas a sua poesia não. Como você vê isso em tempos de tanto é, enfim... polarização total e aquilo que eu falava com o Marcelo Ariel, como é que é isso aí, esse embate, essa resistência?

 

Jr. Bellé:

Cara, eu acho que assim, a poesia ela é linguagem carregada de mais alta voltagem possível de radicalidade. Mas essa radicalidade ela não pode ser absolutamente intrínseca à linguagem, ela também tem que ser uma radicalidade política, especialmente nesse momento que a gente vive. Se ela é absolutamente autocentrada dentro da própria linguagem, dentro do próprio, da própria, da experimentação, a gente vai perder bastante disso. A gente está num momento de uma extrema, de uma gigantesca polarização, e a gente está num momento muito perigoso também da história humana, né, com aquecimento global, com ascensão dos fascismos de todas as ordens e pipocando de um jeito maluco, pipocando na nossa cara, né, de um jeito maluco. A gente viveu um regime protofascista no Brasil, em que mais de 700.000 pessoas morreram.

Então eu acho que a poesia não pode ficar alheia a isso, ela não pode esquecer, esquecer as raízes de onde veio, as raízes políticas de onde essas discussões e esses temas estão acontecendo. E no chão social em que você  tá pisando, então, a poesia talvez não possa ser ideológica, mas ela não, não pode não ser política. E eu não acho que ideologia seja um problema inerente à poesia também não, não acredito nisso. Eu acho que quando você faz uma poesia que é um puro manifesto, aí sim, né, se é uma poesia, muito é...

 

Reynaldo Bessa:

Panfletária, né? Enfim..

 

Jr. Bellé:

Muito panfletária, exato. Eu não queria usar para panfletário porque ela está um pouco carregada já, mas assim, se se ela faz só isso, se ela está ali simplesmente para ser usada como um panfleto político de alguma vertente política, obviamente que é uma poesia pobríssima, obviamente que ela não tem nenhum, nenhum... Ela não tem nenhuma experimentação de linguagem, e a linguagem cria, a linguagem tem essa função social. Mas se você também não olha o chão social onde você está pisando, e você está falando, sei lá, sobre o céu azul, enquanto lá fora tem 750.000 pessoas morrendo ou enquanto o fascismo está acendendo em grande parte da América, da Europa, e já está fazendo história na Hungria etc., você está absolutamente perdido do mundo que você está. E você está tirando da poesia uma função de transformação social que não só ela tem, como merece ter, como ela precisa ter. Senão ela vira um inutensílio que o que o leminski falava, ela vira um utensílio inútil mesmo, porque o utensílio tem muitas funções, mas utensílio inútil não tem.

 

Reynaldo Bessa:

Enfim, eu acho interessante isso que você falou, porque é muito, tem muito a ver com, né? Com a gente chama essa coisa da... que o mundo é outro, né? O mundo é outro, a poesia do entre-guerras, das guerras falavam..., tinha esse embate também, então o mundo é outro e a poesia absorve esse contexto, o contexto é outro, a poesia não pode... Nós não podemos em pleno embate hoje, né, essa polarização, o Brasil, enfim, esse país nas mãos, enfim, prestes a voltar às mãos de um, enfim, não vamos adentrar isso porque a ideia do programa não é essa, mas não tem como a poesia permanecer ali falando de céu azul, de flores e tudo mais...

 

Jr. Bellé:

Não tem cara, toda linguagem, tudo assim... A gente tá numa, entre aspas aqui, porque essa é uma expressão da direita, é “uma guerra cultural” e a base dessa, dessa disputa, dessa guerra, dessa... é a linguagem. E a poesia é basicamente um laboratório de linguagem, onde a gente cria novos formatos, onde a gente cria novas dimensões das palavras, a gente dá novas dimensões para as palavras. A poesia é o grande laboratório de linguagem que existe. Então, se a gente não tiver empenhado também em fazer uma poesia engajada, mas engajada, bem engajada com uma voltagem alta de radicalidade na própria linguagem, a gente não vai fazer isso de uma maneira decente. A gente vai perder essa, essa disputa, que é uma disputa importantíssima nesse momento.

 

Reynaldo Bessa:

É, nós somos poetas, temos esse material para fazer a poesia e então temos que participar desse momento, não é isso?

 

Jr. Bellé:

Exatamente.

 

Reynaldo Bessa:

Jr., querido, você tem algum poema teu, que é bilingue o teu livro, né? Então você pode ler, por gentileza, se você ler um, pode ser em português e pode ser se você puder, no caso quiser, o Kaingang, você consegue...

 

Jr. Bellé

Cara, não arrisco em Kaingang, vou deixar isso aqui para o André. Eu tô aprendendo Kaingang, cara, o Kaingang ele é uma, ele é uma... um idioma queria do tronco G. Então, quando a gente pensa em idiomas indígenas do Brasil, a gente sempre pensa no Tupi, a gente pensa em Tupi-Guarani, que é mais recente. E são palavras muito... pororoca, por exemplo, que é uma palavra que o Leminski usou muito para definir aquele choque entre a Tropicália e os concretos etc. É uma palavra muito fácil, mas o kaingang, bicho, é uma língua, é um idioma muito difícil. O título do livro mesmo que está aqui, que é Retorno ao Ventre, em Kaingang, ele fica “Mỹnh fi nugror to vẽsikã kãtĩ”. E ele é, ele está aqui assim é muito difícil de falar.

 

Reynaldo Bessa:

Ah, sim.

 

Jr. Bellé:

Mas eu vou...

Pode falar, desculpa...

 

Reynaldo Bessa:

Eu achei que a língua mais difícil, pelas minhas leituras, pesquisa, era o aramaico, né? A língua de Cristo, enfim. Mas tem línguas mais difíceis, né? É isso.

 

Jr. Bellé:

É isso. Tem, tem, com certeza.

 

Reynaldo Bessa:

Você está trabalhando, você está trabalhando aí, fica tranquilo. Se tiver alguma demanda aí pode resolver. Depois você lê, viu?

 

Jr. Bellé:

Os colegas já resolveram. A gente tem uma solidariedade aqui, epistemológica praticamente, do proletariado Sesquiano, que funciona bem. Bom, eu separei um poeminha aqui, ele não é tão longo, mas ele é um pouco longo, porque os poemas do livro são um pouco longos. Posso ler?

 

Reynaldo Bessa:

Pode, pode.

 

Jr. Bellé:

Vamos lá, Esse aqui chama “O Destino do Dia”.

“Eu tinha tanto medo quanto uma criança branca pode ter. O bafo de álcool do pai, o soluço-silêncio da mãe, o dinheiro pouco, as mudanças muitas e as casas cada vez menores, cada vez mais distantes. E quando o dia é ferido de morte, como é o destino do dia, e seu sangue escorre no céu como pôr-do-sol, no meu peito se fazia geada feito essas madrugadas castigadas de inverno do sudoeste do Paraná. Me restava a lanterna acesa como tocha debaixo do cobertor de lã. Foi quando tia Pedra fez um pacto de silêncio com minhas trevas. Me botou no colo, como sempre fazia, agarrou um cafuné, como sempre fazia. Meus cabelos loiros, tão loiros, quase brancos meus cabelos, dançando entre seus dedos marrons de mulher velha, seus calos me ninando, até que o medo da escuridão nos meus olhos tombasse abatido pelo sono.

Você mimou meus monstros, dengou meus demônios, deixou que corressem soltos e se amassem, se reproduzissem, que habitassem meus mares, meus vales, montanhas e pesadelos, que fizessem casa e fizessem fogo na caverna dos meus ossos.

Enquanto eu dormia, tia, você velava a minha multidão. Eu tinha tantas certezas absolutas quanto um adolescente branco pode ter. Mas isso foi antes da minha mãe morrer. Foi antes do terceiro câncer, dessa vez no cérebro, dessa vez lentamente cruel, vivamente incurável. Espalhou-se por todas as carnes, jamais conseguiu penetrar o coração. Depois que minha mãe morreu, toda a certeza e todo absoluto morreram com ela. Do corpo, da raiva, da sepultura dela nasceu uma rosa chamada dúvida, o seu perfume tem cheiro de mãe e, para mim, mãe tem cheiro de saudade. Nunca mais voltei ao teu túmulo, mãe, mas aguei aquela rosa todos os dias, ainda águo.

Eu tenho tantas dúvidas quanto um homem branco pode ter, mas então veio aquela tarde de ventania, você lembra, tia? Aquela que levou embora a gaiola de pássaros do vizinho, a loja de pássaros do centro, o viveiro de pássaros do tio João. E depois teve aquela enchente, você lembra, tia? Aquela que inundou a peixaria do bairro, inundou o aquário da tia Teresinha e me deixou meio desconfiado. Deus, talvez exista.

Tia, o médico disse que você entrou no estágio 7. Esse é só um termo técnico, mas quer dizer desesperança. Tia, o médico diz que você entrou no estágio 7, que já não fala, mas eu escuto os seus olhos. Que quase não come, mas há fome na sua pele. Que não se move, mas pra onde você iria, tia? Pra onde? Já não há mais lugar, tudo é ruína. Já não há mais ninguém, nem mesmo eu estou aqui. O pão já não há nem o trigo, mas eu toco o seu braço e os pelos se afiam, caninos, devoram meus dedos como sua boca não pode, como sua boca não diz. Tia, não ter para onde ir pode ser o começo da partida. Quem sabe a solidão seja um princípio de partilha”.

É isso.

 

Reynaldo Bessa:

Que bom, cara, que bonito, que bonito. A Deborah Izola colocou aí... da produção do Pois É, colocou uma chamadinha aí... você não viu, você vai ver depois. É gravado. Esse... o grande barato do Pois É, Poesia é que as escolas, as universidades vêm buscar. A gente fragmenta os episódios depois e joga e vai semeando, e as escolas usam muito isso. Ela ressaltou aqui.

Querido, agradeço imensamente sua participação, prazer te conhecer, já tinha ouvido falar muito.

 

Jr. Bellé:

Prazer demais e muito obrigado pro Ademir Assunção, que leu o livro depois de muito tempo que eu fiquei enchendo o saco dele. Ele veio aqui dar um curso aqui no Sesc, que a gente é amigo há um tempo.

 

Reynaldo Bessa:

Sim.

 

Jr. Bellé:

Eu entreguei o livro para ele. Ele demorou para ler. A hora que ele leu, ele me colocou em contato com você, muito obrigado, muito obrigado, viu?

 

Reynaldo Bessa:

Imagina, ele leu, ele falou horrores, assim, bem, no sentido positivo, falou, falou muito bem do livro, falou que é algo completamente diferente. Então eu já tinha lido, fui buscar o livro, reli e você está aqui no programa e foi bom demais, cara, obrigado mesmo. Sucesso aí no trabalho e na poesia, em tudo na vida. É nós!

 

Jr. Bellé:

Pra nós! Abração.

 

Reynaldo Bessa:

Valeu! Valeu, querido, valeu.

Eu queria trazer aqui antes de terminar, já que a Vera Eunice caiu, enfim, a gente teve um pouco mais de tempo, a média do Pois É, Poesia é de 1 hora e 40, 50, 2 horas... a gente está no tempo. Eu queria só ressaltar aqui a parte que a Vera Eunice ia cumprir, né? Pra falar do evento “Carolina, a escritora do Brasil”, que foi realizado nos dias 15,16 e 17 de outubro, em Nova Iorque, Washington DC né? Esse evento a Carolina não pôde vivenciar, era tudo que ela queria, era poder repercutir em outros países. Ela não pôde. A Vera Eunice participou desse evento. A gente ia falar sobre isso. Vários biógrafos, Tom Farias, enfim, esteve lá para falar, um grande evento, grande e justo evento em nome de uma escritora negra, enfim, brasileira, né, chamada Carolina Maria de Jesus.

E eu queria também ressaltar “A poesia de Carolina Maria de Jesus - um estudo de seu projeto estético, de suas temáticas e de sua natureza quilombola”, de Amanda Crispim Ferreira, está sendo editado, foi editado pela editora Malê, 2022. É recente. É um convite aos leitores e leitoras a adentrarem a obra poética de Carolina, ou da poetisa, como é chamado ao longo do livro, por meio de uma escrita fluida, envolvente, sem perder a profundidade analítica e o diálogo contínuo com a teoria e a crítica, elucida, ao lado de outras vozes, o projeto literário da autora, construído no cerne da narrativa oral, na breve alfabetização escolar e no desejo de trazer a luz pela palavra literária o mundo pulsante que carregava em seu corpo de mulher negra.

Achei interessante registrar isso, porque esse evento fora do Brasil aconteceu, era tudo que Carolina Maria de Jesus queria. Agora sim, eu vou encerrar o Pois É, Poesia com outro poema. Mas eu já queria, já queria agradecer aqui a todos a presença do pessoal do chat, enfim, a equipe do Pois É, Poesia, né, por mais um episódio, esse episódio fantástico e aqui eu achei o poema que eu quero ler. É de um poeta, um grande poeta, que faleceu recentemente. Faleceu agora, né? Há pouco tempo, poucos dias, né? Então ele diz o seguinte:

“Mentiram-me

Mentiram-me ontem

e hoje mentem novamente.

Mentem de corpo e alma completamente.

E mentem de maneira tão pungente

que acho que mentem sinceramente.

 

Mentem sobretudo impunemente.

Não mentem tristes,

alegremente mentem”

Affonso Romano de Sant'Anna, grande poeta. É isso, pessoal, até o próximo episódio do Pois É, Poesia: arte no plural. Valeu!

 

(Vinheta cantada) Pois É, Poesia

Pois É, Pois É, Pois É, Poesia.

Poesia há. Ou não.


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

De quem é "Eu sou o tempo", mensagem interpretada por Fernanda Montenegro?

De quem é a música "Botei uma flor na janela" que viralizou no whatsapp?

#99 Sandra Groth: do pioneirismo nos anos 80 à despedida do rádio em 2020 - 37 anos de sucesso na Cidade