Transcrição: entrevista de Binho, do Sarau do Binho, para o Podcast Pois É, Poesia: Arte no Plural

 


Binho, do Sarau do Binho, de São Paulo, foi um dos participantes da transmissão ao vivo de dezembro: ⁠Sarau, a Poesia do Coletivo⁠, que pode ser visto na íntegra neste endereço.


Na conversa com Reynaldo Bessa, ele fala sobre a ressignificação de sarau, a partir de ações em bares da periferia. Binho também rememora alguns dos projetos de incentivo à leitura em que está diretamente envolvido. Alguns deles são o Movimento de Literatura Marginal e Periférica, a Expedición Donde Miras - Caminhada Cultural pela América Latina; e o Postesia - poesia nos postes.


Binho conta ainda como mantém o sarau que leva seu nome, que, atualmente acontece no Espaço Clariô de Teatro e a partir de ações em escolas. Veja a participação do agitador cultural no vídeo abaixo ou no podcast do Pois É, Poesia: Arte no Plural no Youtube, Youtube Music ou Spotify. E, em seguida, acompanhe a transcrição da entrevista. 


(Vinheta)

 

Reynaldo Bessa:

Bom, o Pois É, Poesia conta também com a participação de outro articulador cultural e que também é responsável por um importante sarau da cena paulistana. É o Binho, do Sarau do Binho, atividade que acontece há 20 anos na zona sul da cidade. Binho é um dos precursores do chamado Movimento de Literatura Marginal e Periférica. Organizou junto com o Serginho poeta, a Expedición Donde Miras - Caminhada Cultural pela América Latina, que já percorreu a pé, com o coletivo do sarau, várias cidades, incluindo os estados de São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro, realizando saraus em ruas e praças públicas.

Binho é autor do livro “Postesia - poesia nos postes” e coautor do livro “Donde Miras- dois poetas e um caminho”, em parceria com Serginho Poeta e Azterketa, e que foi escrito durante a pandemia.

Criador de alguns projetos de incentivo à leitura, dentre eles, o Brechoteca-Biblioteca Popular do Jardim Rebouças, a Bicicloteca, bicicleta adaptada para distribuição de livros, o Projeto Pra-ti-ler , prateleiras com livros para empréstimo em pequenos comércios do bairro,  a Distribuição de livros no Terminal de Ônibus Campo Limpo e mais recentemente o Projeto Livros no Ponto, com a distribuição de livros em pontos de ônibus.

Binho, querido, seja muito bem-vindo ao Pois É, Poesia. Tudo certo, tudo bem, tranquilo?

 

Binho:

Tudo bem, muito obrigado. Obrigado pelo convite estar aqui esta noite.

 

Reynaldo Bessa:

Uma honra, uma honra ter você aqui. Há muito tempo, eu nunca participei, como eu falava, eu participei de uma das edições do Cooperifa, mas nunca participei do Sarau do Binho. Mas já vi umas histórias aí, vamos conversar sobre isso, gostei muito da tua luta, da maneira como você empreende, enfim, da história do Sarau do Binho. E eu já vou mandar bala na primeira pergunta. O programa aqui tem um viés um pouco provocativo, tá?

 

Binho:

Bora.

 

Reynaldo Bessa:

Não chega a ser um Provocações do Antônio Abujamra, do qual eu comecei aqui, iniciei fazendo uma homenagem, mas ele tá por ali. Ele está por ali, entendeu?

Bom, o Sarau do Binho começa, em tese, em 1993, certo? Um grupo de pessoas com afinidades artísticas reuniu-se num bar para ouvir músicas em discos ainda em vinil. Você disse que na troca dos discos, - isso você disse porque eu li uma entrevista, você dizendo isso, né - pessoas da plateia, entre as trocas dos discos, pessoas da plateia liam poemas. Até aí, era um só encontros informais. Em 2004, o sarau se formaliza - é isso? - podemos dizer.

O que te levou a pensar, Binho, que esse evento, num futuro breve, teria relevância para a região. Chegou a pensar nisso ou foi...?

 

Binho:

Não, eu não cheguei a pensar, não. Como você falou, acho que a data mais... A gente tinha um bar, não é? Eu e Suzi (Soares), minha companheira. E aí em 95, nós começamos a fazer uma coisa lá que chamava a Noite da Vela, que como a Kátia (Suman) antes falou, não é? A gente colocava umas velas, aquela noite o bar se transformava, porque no dia a dia não era assim, né? E aí, com isso, entre um vinil e outro, pessoal já animado, porque era um bar, né? E aí alguns amigos, de repente alguém ficava com vontade, de repente, de falar um poema, e eu já gostava de poesia. Mas eu não me considerava poeta, não escrevia, mas gostava, apreciava a poesia. E a partir daí a gente começou, entre uma música e outra, a deixar um poema e tal, alguma coisa. E aí começamos, né? Comecei a levar algum livro de casa que eu tinha, mas eram os clássicos, né? Era Drummond, enfim, Manuel Bandeira, os que a gente tinha visto, mesmo canções e tudo.

E nesse dia a gente tocava o vinil, o bolachão, o lado b do disco, onde as rádios não tocava, né? Então a gente procurava colocar aquelas músicas, estranhas aos ouvidos, que nós não estávamos acostumados no dia a dia. E aí, isso foi 95, mais ou menos, já tinha o CD, estava surgindo por ali e tal, mas a gente ainda estava no vinil, ali, naquele espaço. E aí foi surgindo devagarinho.

Numa dessas Noites da Vela, eu falei para o meu cunhado assim, ‘a gente podia colocar a poesia nos postes, não é?’ E aí veio eleições, né? A gente retirava, em 96, retirava as placas dos políticos das ruas e pintava ela, devolvia depois com poesia. Aí eu já estava escrevendo poesia, já conhecia a palavra sarau através de um curso de biodança que eu tinha feito com os amigos da biodança e assim foi surgindo. E então, 97 lançamos a Postesia e saía esparramando poesia pelos bairros aqui da região do Campo Limpo, onde eu moro, e íamos até o centro... que é um bairro de periferia, não é? A gente mora, pra quem não conhece, é zona sul, Capão Redondo, Campo Limpo fica nessa região. E aí, depois, em 98, lançamos a Postura, né? Esse outro foi Postesia, depois foi a Postura, que também retiravam as Placas dos políticos e devolvia com pinturas. As pessoas... esse já foi um trabalho coletivo bem bacana, que o nosso... lanchonete... o bar virou um ateliê, na calçada e tudo. E aí depois saímos para colocar essas placas, não é, esses quadros, essas telas, era um trabalho maravilhoso por São Paulo, não é? Foram mais de 400 telas que a gente fez mais ou menos assim.

Aí 99, eu lancei um livro de poesia, o Postesia e aí foi surgindo. Depois de um...  fazemos também o movimento com música no bar e tal, mas 2000 por aí, acho, o Pezão, que é o Marcos Pezão, né, que conhecia, ele tirou umas fotos, ele colocava no jornal. Pegou a foto da Postesia e publicou no jornal de bairro aqui. E depois ele era amigo do Sérgio também, do Sérgio Vaz, e então nesse trabalho que a gente fazia, não era sarau. A gente não chamava isso de sarau. Isso era a Noite da Vela. Depois que, com o Marcos Pezão e o Sérgio Vaz veio a palavra forte mesmo, que eles fundaram a Cooperifa e ficou forte a palavra sarau para gente, não é?  Realmente ressignificou essa palavra. E era uma coisa, como você disse no começo, uma coisa dos casarões, das elites e tal, né? E aí depois foi para os botecos de quebrada, nas periferias.

Aí eu já fui lá no nesse espaço Garajão, que eles começaram a Cooperifa lá. Acho que eu fui no segundo sarau já, comecei a frequentar também. E aí foi depois, em 2004, que nós viemos montar o nosso... toda segunda-feira. E aí, eu já montei um outro bar, né, nós montamos um outro espaço e continuamos a seguir esse caminho aí. Eu já conhecia muitos poetas. Foi muito bacana, porque os poetas foram se formando no caminho, né? E eu também, porque eu também não me considerava poeta e nem nada. E aí, o Sarau foi esse laboratório onde a gente aprendeu um com outro, de observar outro fazer, né? Cada um tinha o seu jeito de conduzir a palavra, o corpo, porque no sarau, pela oralidade, a gente utiliza muito o corpo para dizer uma poesia, para contestar, para criticar, para amar, para ter um afeto. Eu acho que o corpo está muito jogado aí, né? Jogado assim, no bom sentido, para a palavra.

Que mais que eu posso te dizer. Daí veio a caminhada assim 2004, 2005, 2006, 2008. Eu, com o Serginho poeta, a gente sonhava de sair andando pela América Latina e tal. Aí eu comecei a chamar o povo do sarau pra caminhar. Falei ‘olha, vamos fazer um teste, né? Vamos até Curitiba andando e fazendo sarau de cidade em cidade’. Nós passamos por quilombos, aldeias, municípios pequenos pelo Vale do Ribeira aqui em São Paulo, até chegar em Curitiba. E aí ficou provado... e a ideia era chegar no Chile, então ficou provado que se a gente fosse até Curitiba, era só seguir a estrada, a gente conseguiria um dia chegar no Chile se a gente quisesse, né? E a gente, depois disso, nós fizemos 4 caminhadas, em cada uma sempre o mote era um livro. A primeira foi através do livro ‘As Veias Abertas da América Latina’, do Eduardo Galeano. Pra gente foi muito importante, né, esse livro...

 

Reynaldo Bessa:

Clássico.

 

Binho:

Sim, é um clássico

 

Reynaldo Bessa:

É um clássico inclusive muito esclarecedor com relação a várias questões, não é, das demandas e pertinências, enfim, da América Latina. Muito bom.

 

Binho:

Sim, sim, nos abriu os olhos para muita coisa. E o título do livro é ‘As Veias Abertas’, e essas veias estão aí até hoje sendo abertas, né?

 

Reynaldo Bessa

Galeano é um grande escritor.

Binho, esse Expedición Donde Miras tinha uma ideia de tentar trazer o pessoal, enfim, você falou do Chile, para essa caminhada cultural, enfim, fazer um bem bolado lá e cá, como é que é?

 

Binho:

Sim, mas assim, como a gente não tinha apoio nenhum, a gente foi nós por nós, né? Então ficava difícil uma pré-produção, algo mais assim. Então nós íamos. Quando nós saímos de São Paulo, a gente tinha conseguido, digamos assim, um bate, como é que se diz, alguma coisa arranjada assim até uns 80 km, mas e daí pra frente era, cada cidade chegava, já tentávamos falar com a outra, sabe? E outra e a outra. E foi assim. E aí dormíamos em escolas e onde desce para dormir. Às vezes, a gente conseguia uma comida. Quando não, a gente tinha o nosso carro de apoio, que era o meu carrinho mesmo que era um Uninho, que aí a gente levava as tralhas todas para fazer comida e tudo. E o povo ia caminhando e, à noite, normalmente, quando a gente chegava numa cidade, a gente fazia um sarau ou naquele dia ou no dia seguinte. A gente andava em média 20 km por dia, né? Às vezes andava 30, às vezes andava 15. Chegamos a andar 40 km num dia e depende da distância para chegar até outra cidade.

E a ideia era essa, não era a gente levar nada, assim, a gente convidava. Como eram cidades pequenas, a gente já chegava, já tentava armar alguma coisa ali com os artistas locais. Quando tinha um poeta, um músico, enfim, o artista que tivesse na cidade, né, e tivesse ali disponível para participar do sarau numa praça da cidade. Uma coisa simples até de fazer. Eu gostei muito de ter feito isso. Infelizmente a gente não chegou no Chile, por essa via, a pé, depois eu até fui no Chile, mas a gente foi por avião, mas o sonho está aí. Quem sabe um dia a gente chega?

 

Reynaldo Bessa:

É, maravilha, eu ia... Você falava da dificuldade de se manter um sarau. Nós sabemos quem, é,... converso muito com o Vlado Lima, enfim, qualquer pessoa que.... qualquer artista, poeta que intenciona montar um sarau, sabe... Tem que saber, né? Tem que saber das dificuldades que vai enfrentar.

Eu ia perguntar justamente isso, do que vive o Sarau do Binho? Tem alguma lei de incentivo, algum patrocinador, algum apoio, alguma coisa? Existe contribuição voluntária? Como é que é isso? Se olhar, são 20 anos, né?

 

Binho:

É, já são... de 95... ah, de 2004, eu pego oficial, não é? Mas, a gente tem assim, olha, às vezes, a gente consegue apresentações. Então, às vezes consegue apresentar no Sesc; Você consegue fazer... já tivemos edital para fazer em escolas, por exemplo. Então a gente vai cavando, né, a Suzi que faz a produção, ela vai cavando situações para que a gente possa, quando é a parte externa, quando os poetas, os músicos vão para algum local serem remunerados, né? Tem um cachê ali, às vezes uma ajuda de custo. A gente sempre tenta conseguir algo.

Agora o nosso oficial que a gente, hoje, a gente está fazendo uma vez por mês, no espaço Teatro Clariô. Já desde 2012, porque a gente na época foi... fomos desalojados desse nosso bar, porque a gente... você que faz sarau, é isso, né? As pessoas sobem no palco. A gente tinha um palco pequenininho ali, com o microfone, e as pessoas sobem no palco e aí começam a falar, né? E às vezes não é bem... a gente não é bem-quisto pelo poder local, que é ou uma subprefeitura, no caso aqui de São Paulo. Então, a gente acabou sendo perseguido por questões políticas mesmo, né? Porque as pessoas, eram ali... o microfone é aberto. As pessoas têm o direito de se expressar e de dizer, né?

E no sarau, o bacana é isso, porque você, às vezes, fala ‘ah o sarau deu fala pra periferia’ e tal. Mas o mais importante que o sarau deu acho que foi a escuta, né, da gente se ouvir, da gente se escutar. Porque você vai ali, você fala um poema, você precisa ouvir 30 poemas às vezes. Então é muito democrático a coisa.

Então, a gente perdeu o espaço lá, em 2012, por conta de questões políticas, não é, infelizmente. E aí nos deram multa e foi triste da gente ver o nosso espaço fechar. E aí alguns coletivos abriram as portas para a gente e tal. É muito bacana. E hoje a gente, desde 2012, nós estamos no espaço Teatro Clariô e a gente está realizando uma vez por mês lá. Fora os outros dias, a gente faz assim, né?

Agora mesmo a gente desenvolveu em escolas nosso... a gente tem um projeto que é uma Matéria Poética, que é o sarau que vai pra escola. Então a gente gosta muito de fazer escola. Tem sido (vou tomar água) tem sido muito importante fazer o sarau em escolas. A gente... era o meu sonho entrar numa escola, de fazer, demorou pra gente conseguir realizar isso, porque a gente era de um espaço no bar. Mas o sarau ir pra dentro das escolas foi uma conquista muito grande. Todo esse movimento, como diz o Sérgio (vaz) aí no vídeo anterior, não é um evento, é movimento mesmo, e várias pessoas ao redor da cidade fazem.

 

Reynaldo Bessa:

Hoje está na escola, né? Está numa escola? O sarau? Eu digo o Sarau do Binho hoje está numa escola ou não?

 

Binho:

A gente vai pra escola, né? Então a gente está no espaço do teatro, mas semana passada eu fiz numa escola. Fizemos muito basicamente aqui na zona sul, percorremos várias escolas aí. Esse aí foi uma conquista com uma emenda que a gente conseguiu do Suplicy e do Donato, desse ano. E o ano que vem,  a gente também tem um apoio, mas é edital que a gente conseguiu e que é um fomento à periferia. E então a gente tenta priorizar esses ternos assim, né, pras escolas, quando a gente consegue alguma coisa para realizar nas escolas, porque eu acredito muito nesse trabalho nas escolas, tanto para os pequenininho como os maiores e tal, é sempre muito bacana a gente ir para as escolas. Eu gosto muito.

 

Reynaldo Bessa:

É que é um trabalho de formação, né? Aí o sarau ele já atinge um outro patamar, que tem a ver com a formação do estudante, a educação, a cultura e, em tese, eles não iriam, né, Binho, ao sarau, digamos, né? O sarau vai até eles e faz esse trabalho que é muito bacana.

 

Binho:

É.

 

Reynaldo Bessa:

Eu como professor, eu vejo isso de uma forma muito positiva até. Enfim, acho que é uma das saídas hoje para, também, para os saraus, uma forma de levar essa informação, esses artistas, essa qualidade, esses poemas para as escolas.

É, Binho, no que a redefinição ou a ressignificação dos saraus nas periferias tem sido crucial para a consolidação do movimento da arte poesia, no caso, marginal, no Brasil. E marginal aqui eu falo nas suas próprias palavras ‘poesia à margem’, enfim, poesia das periferias, poesia periférica. Essa ressignificação, vindo lá do século 19 para ir no percurso de rupturas e rupturas até hoje, como o próprio Sérgio Vaz disse que agora é sim, é um...  Não é um evento, é um movimento. Ou seja, o povo, né, na verdade, toma conta do sarau. E o que que você acha que foi crucial, essa ressignificação para consolidar essa poesia à margem, essa poesia... você acha que contribuiu bastante? Você acha que ressaltou, enfim, ou não?

 

Binho:

Eu acho que sim. Tanto os saraus, os slams, as batalhas de rima hoje, o próprio movimento - acho que a gente não pode esquecer, né, do movimento hip-hop - a força das “posses” de hip-hop também dos anos 90, também a abertura política do Brasil. Todo um movimento que foi possível, porque, se fosse na época da ditadura, você não podia nem falar no espaço, juntar três, quatro pessoas para falar você estava, né? Então era complicado. Então, acho que não foi um fator só, né? E essa ressignificação de você, hoje você tem ali no sarau empregada doméstica, taxista, eletricista, todas as profissões, professores, gente que ainda está se formando. Então o sarau reúne, né? São várias pessoas. Você vê empregada doméstica fazendo ali, ressignificada sua vida, lançando o livro, é? Então, eu acho que foi um salto muito grande, você vê, toda semana, todo mês tem alguém lançando o livro no sarau. Isso é importante. A nossa... a gente organiza também uma feira de livro. A minha irmã teve uma ideia aí, idealizou uma feira de livro, na periferia, que foi muito bacana. Então, desde 2015 a gente realiza a FELIZS, Feira Literária da Zona Sul. Eu tudo isso, parece que a gente, olhando para trás, foi um... Foram degraus que a gente foi galgando para acontecer, de repente hoje acontecer uma feira, né? Tem a Mostra Cultural da Periferia, tem outras feiras acontecendo em São Paulo, inspiradas também já na FELIZS. Então, acho que essa ressignificação do sarau, desse movimento literário agora, eu acho que a oralidade né? Você falou o que foi crucial? Essa coisa de respeitar o outro na oralidade, na fala do povo, também. Eu acho que isso foi muito importante no sarau. Porque não precisava escrever um livro. Você não precisava ter uma poesia regida por uma norma culta, né? Pra você falar um poema, para dizer. Às vezes a gente... nem é poema, né? Às vezes é uma troca de ideia que a gente fica ali, às vezes tem uns saraus tão intimistas e a coisa vai fluindo de um jeito, quando você vê, as pessoas estão falando de si, estão jorrando para fora. É quase uma terapia também. Então, o sarau serve para tanta coisa assim, tanta coisa bonita que já aconteceu. E você vê gente com tanto talento no Brasil, né, nas periferias. Então é tão bonito de você ver isso, né?

Eu acompanho isso assim há mais de 20 anos, com essa trajetória, eu vi muita gente crescer, muita gente evoluir no sentido mesmo da palavra e do conceito, né, pra pessoa como ser humano. Então eu acho que a oralidade foi muito importante. A nossa fala, o nosso jeito de contar nossa história, nosso jeito de dizer as coisas foi muito importante nesse processo. Depois dos livros, eu acho, que veio também. Aí, por isso que a gente vai com os livros, a gente acredita, né, o próprio selo Sarau do Binho hoje já lançou mais de vinte livros de poetas dentro do sarau, pessoas que estão ali, que escrevem, que não escreviam. Escreviam no guardanapo de papel e hoje estão aí lançando o livro, vendo seus ‘filhos’.

 

Reynaldo Bessa:

É, a palavra, a palavra vem primeiro, não é? Depois é que vem a escrita. Enfim, as normas, a gramática, as regras.

O Ferréz já apareceu por lá alguma vez em uma das sedições?

 

Binho:

Já! O Ferrez, sim, já participou da FELIZS, dos saraus ver?

 

Reynaldo Bessa:

Eu vi a divulgação da FELIZS aqui, muito bacana. Boa essa ideia. Eu vou te perguntar a mesma coisa aqui que eu perguntei para a Katia (Suman) também, que é uma pergunta até, inclusive em comum a todos os convidados, convidadas. Enfim, nesses 20 anos, o que que você acha que manteve aí o sarau do Binho?

Claro que a poesia, o amor, empreendimento, como eu falava com a Katia. Claro que primeiramente venha, venha o amor à arte, o amor do que a gente faz, enfim, a fé, a crença no que a gente realmente sabe fazer e quer fazer mais. Tem alguma coisa que você diga? ‘Olha, eu acho que o sarau ele tem 20 anos, ele conseguiu chegar a esse momento porque ele tem isso e...’ Ou então, enfim, isso, aquilo outro... Que que você acha?

 

Binho:

Eu acho que foi um pouco a persistência de fazer mesmo em momentos - porque eu tenho altos e baixos também, né? Não é sempre no topo, não é? - aí tem momentos, às vezes é difícil para você levar o público, são situações, às vezes, o nosso, por exemplo, numa segunda-feira, né, aí já é um dia meio complicado para você realizar. Mas eu acho que o que manteve, eu acho, foi um pouco, é um pouco dessa história que eu te contei, tanto da caminhada - a gente criou vínculos. Nessa caminhada, a gente teve... foi incrível porque você viajou um mês com a pessoa. Então aquilo foi criando vínculo para o sarau também. Foi muito importante essa caminhada acontecer. Apesar que a última foi em 2010, né? E aí ir para as escolas, né? Então, acho que cada tempo que vai se passando... não tem uma fórmula para dizer ‘ó, é isso que dá certo’, né? Mas é essa vontade de fazer... da arte que está dentro de cada um se apresentar, nos espaços. Aí, você saber que você vai preparar um poema e vai ter um sarau, eu vou apresentar esse poema. Ou mesmo que seja um poema repetido, sempre são emoções diferentes. Então, é persistir nesse processo todo, acreditar nisso. E acho que não tem uma fórmula. É difícil falar, viu, sobre isso?  Não tem uma fórmula, é estar aberto. Na verdade, quando você menos espera, aparece gente da África do Sul. Vem gente, assim, eu estou dizendo assim porque a gente teve recentemente a apresentação de uma senhora, não é, Clarah Swatson, muito legal no sarau e ela é da África do Sul e tal.

 

(Trecho da apresentação de Clarah e Bonisiwe, integrantes do projeto Libertarte Poesia e Coragem, que estiveram no Sarau do Binho, em abril de 2024)

 

Binho:

E a história dela é bonita, ela esteve presa aqui no Brasil, não é, questões aí. E aí é uma artista incrível, né? Então aí você vê esses artistas brilhando e a gente fica conhecendo alguém da África do Sul, sabe? Esses intercâmbios que vão acontecendo, porque a gente não se alimenta só ali do núcleo do sarau, né? As pessoas que vêm de fora que estão nos visitando também. Todo mês, sempre tem alguém que nunca foi, né? Então, tudo é... É retroalimentação o tempo inteiro, né?

 

Reynaldo Bessa:

Eu perguntei, eu pergunto isso porque isso é muito importante para aquelas pessoas hoje, né, que querem montar também um movimento, enfim, querem montar um sarau.

 

Binhod:

Legal, importante...

 

Reynaldo Bessa:

E no que se sustenta, porque às vezes as pessoas não é, criam movimento não só por elas mesmas, mas acaba não dando certo, porque existe essa persistência, existe essa luta para manter, como você falou, não é só no topo, existem muitos baixos, né, não são só altos, então é preciso saber lidar com isso.

Por isso que eu perguntei para Katia (Suman) e pra você pra saber, olha, de repente faz isso ou faz aquilo. Tem um movimento agora de jovens, de negros e negras, enfim, na Bahia, criando saraus que tem um viés muito para discussão... tem lá a poesia, a arte, mas uma discussão, conscientização política, não é? A discussão é trazer a literatura, mas pelo viés político, sociológico e tal. Pegar um romance, por exemplo, pegar um Graciliano Ramos, um Guimarães Rosa e ao invés de falar sobre literatura em si, pegar mais por um viés político, né? Para inclusive dentro, no contexto brasileiro, essa realidade brasileira, inclusive por eles mesmo, né? Esse pessoal em posição mais vulnerável, enfim, que está lutando por esse momento, por esse espaço.

E eu achei isso muito interessante, porque aí vai se atualizando, vai se ressignificando o sarau e vai tomando proporções maiores. E aí, focar essa ideia do que você tinha e tem sobre por que que o Sarau do Binho ele conseguiu durar, ter essa durabilidade, não é... porque você já disse, esse comprometimento, essa luta, essa persistência, essa resistência, e isto você respondeu muito bem, e isso é muito importante para os movimentos, enfim, sejam saraus ou qualquer outro que propaguem aí a nossa arte brasileira, como eu falava para Kátia, que tem tão poucos espaços, né? Vamos dizer que tem poucos, então, como ela mesma sugeriu, vamos nos unir para abrir aí os espaços que tendem a fechar, né? Mas, na verdade, tem que ser o contrário. Tem que abrir. Mais saraus e mais saraus e mais saraus. Você quer dizer mais alguma coisa, meu querido? Um prazer grande te receber aqui. Prazer grande saber mais do Sarau do Binho. Eu escuto muito falar de vocês lá, da luta de vocês. Fico muito feliz por isso.

 

Binho:

Ah, vem fazer uma visita pra nós a hora que der.

 

Reynaldo Bessa:

Com certeza.

 

Binho:

O nosso é sempre a segunda Segunda do mês. Você perguntou uma coisa que eu acho que é isso, além da persistência, né, nós estávamos falando, mas, mesmo que de repente, no sarau tem dez pessoas. Chegaram ali naquele dia. Você vai fazer com dez, mas se tiver uma para te ouvir, o outro querer falar poesia, você vai continuar, entendeu? Esse aqui é que é bacana assim. Às vezes é legal quando a casa estava muito cheia e tal bastante gente, mas também é legal quando tem, menos e tá aquele menos é mais, no sentido dali, de ser intimista, sabe? De você poder às vezes até aprofundar mais um poema ou ali uma emoção, né, digamos assim, uma emoção.

 

Reynaldo Bessa:

A conversa fica muito boa e a produção me avisou que você valeu um texto, não é isso? Então você quer ler alguma coisa sua?

 

Binho:

Um poema, não é? Eu vou ler um poema. Pode ser do poema do Campo Limpo. Eu vou ler um pequenininho agora e vou ler um outro do Campo Limpo, que também é pequeno. Dois curtinhos.

 

Reynaldo Bessa:

Beleza!

 

Binho:

Ah, esse aqui quando eu fiz, o poeta Manoel de Barros ele gostou muito do poema, escreveu uma carta pra mim dizendo, né? E aí eu vou ler esse poema curto aqui:

Automorrer

Corta corda, corta, corta a corda, corta

Acordou morto

No pescoço, a corda

Na faca, a esposa

Na cara, a calçada

Corta a corda, corta

Corta a corda, corta.

 

E agora eu vou ler o outro, Reynaldo, é sobre o Campo Limpo.

Campo limpo, Taboão, Capão.

Quando eu nasci, tinha 6 anos.

No lugar onde nasci, sonhava que era tudo nosso, tinha os campinhos e os terrenos baldios.

Era o meu território.

Já foi interior.

Hoje, periferia, com as casas cruas, as vacas com tetas gruas, não existem mais.

A cerca virou muro, óbvio.

A cidade cresce, o muro cresce.

Vieram os prédios, as delegacias, os puteiros e as Casas Bahia.

Também cresci, fiquei grande e já não caibo dentro de mim.

E de tão solitário, sou meu próprio vizinho. E de tão solitário, sou meu próprio vizinho.

 

Reynaldo Bessa:

Maravilha! Cara, Manoel de Barros, há muitos anos, acho que mais de 20 anos, quase 30 anos, me encontrei com ele lá no MASP. Ele estava lançado workshop que estava pessoal estava fazendo sobre o trabalho dele. E um momento muito, muito lúdico, muito mágico, porque eu tinha vinte e poucos anos, acabado de chegar em São Paulo. E eu já conhecia o trabalho dele e aí eu entrei na fila para falar com ele para pegar um... eu tenho até hoje esse postal está por aqui. Está autografado lá Mandel de Barros. E ele pegou, olhou para mim e disse, você é poeta, né? E eu disse, não, eu acho que não sei. Eu sou poeta, mas estava trabalhando muito com música, enfim, fazendo, gravando meus discos e tal. E queria gravar meu primeiro disco. Aí ele disse ‘não, você é poeta’. Ele colocou ‘para o poeta Reynaldo Bessa, Manoel de Barros’. Eu tenho até hoje isso, cara, poeta que eu tenho maior admiração, Manoel de Barros.

Querido, você quer falar mais alguma coisa, tranquilo, está tudo certo? Sucesso para você. Deixe seu recado aí.

 

Binho:

É um recado aí para o pessoal, então, estamos aí em 2025 vamos ver o que mais a gente continua, né? Estamos aí fazendo coisas, com certeza vai ter bastante sarau na escola ano que vem.

 

Reynaldo Bessa:

Maravilha, querido. Um abraço. Sucesso, viu?

 

Binho:

Obrigado, Reynaldo.

 

Reynaldo Bessa:

Valeu.

 

(Vinheta)

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